Tão barroco era o teatro em seus veludos e detalhes, que até
as pessoas pareciam entalhadas em seus trajes e feições de madeira.
A promessa é de que seria um espetáculo diferente, embora
não se soubesse em que. Os atores se riam ao ouvir sobre isso, não por
discordarem de que seria um espetáculo ímpar, mas por um leve sadismo ao
imaginar as pessoas nesse acontecimento. Sadismo por saber que aqueles que são
tocados nunca mais podem voltar atrás.
O espetáculo acontece, se é que acontece, apenas uma vez num
relance atemporal. Nunca mais se repetirá.
Nele não se oferece nem paraíso nem inferno, pois nesse
momento não há dicotomias. Ao invés de oferecer uma moeda de duas faces oferece
uma moeda de apenas uma face.
Ao terceiro toque da campainha as cortinas não se abrem, o
acontecimento se inicia nos bastidores, nas plateias e nos camarotes que é
realmente onde sempre acontecem os espetáculos. Por detrás das máscaras de calma,
olhos ligeiros procuram o cenário principal do drama.
Em um camarote, diagonal ao palco, um dos personagens, João,
senta-se frente ao espelho e com o característico borbulhar na barriga que
precede o início de algo, olha e se reconhece no reflexo invertido do espelho.
João não é bonito nem feio, nem bom nem mau, nem branco nem preto, ele é tão
comum e mediano que seu oposto, seu reflexo, é ele mesmo. A única diferença
está no sexo.
João enfia então a mão no espelho e começa a sacar de lá sua
versão feminina.
Sentados agora frente a frente, João e Maria, com o espelho
já esquecido, inclinam-se em direção ao outro, para eliminar os ruídos do mundo
e para que o diálogo se faça.
João profere então um texto antigo, escrito por Maria, a
muitos anos atrás, após ouvir João hoje. Maria ouve e escreve, João lê e fala.
Para não aborrecer ainda mais aos que tentam ler e ouvir o
que estão dizendo me calo e deixo a cena já começada por conta dos dois.
...eu quero beber, beber tuas palavras
não como sedento viajante, perdido pelo deserto
mas sim como bebê saciado, que suga o seio por puro prazer
eu quero beber, beber tuas palavras
engolindo ora frases, ora tons
mas com calma, sem muita força, para não separá-las ou
quebra-las
tua fala rola por entre meus dentes e língua
vai brincando com eles e deixando minha boca em sorriso
eu quero beber, beber tuas palavras
como o cão que fica tentando abocanhar o mosquito em vôo,
fico eu a tua frente mordiscando teu ar, teu canto, encanto
eu quero beber, beber tuas palavras
perdido nos sentidos dos dizeres
percebo que fala de mitos, de sonhos e de ritos,
percebo que fala de mim de você e de mais ninguém
Ora entendo a gramática, ora apenas entonações, silêncios e
sons
...eu quero beber, beber tuas palavras
respiro você, sou você
Por momentos penso que é só você quem fala
Descubro então, que falo através de você, num presente
infinito,
contando histórias antigas que só nós podemos entender
eu você, você e eu, nós um
...eu quero beber, beber tuas palavras
não com afã ou volúpia,
mas com a intensa tranquilidade do tantra em seu rito
palavras quentes e salgadas me nutrem,
doces e frias me refrescam
eu quero beber, beber tuas palavras
tento sorver cada sílaba/sentença
umas porém me escapam pela boca
igual a criança que baba de prazer enquanto ri
imagens e sons se transformam
viram tato, paladar e olfato
e eu continuo a beber tuas palavras...
Como até o tempo parado uma hora tem que acabar, eles se
calam e respiram algumas vezes mais antes dos olhos se perderem.
João então se levanta e juntamente com os outros presentes,
lança aplausos em direção ao palco, o qual agora já se encontra com as cortinas
abertas, embora vazio.
Com as mão vermelhas, veste o sobretudo e as luvas, desce as
escadarias e vai.