sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Menino Morto de Cândido Portinari


Em meio à seca escorrem as lágrimas, é a dor molhada em um cenário de areia que não vê chuva por incontáveis tempos.
Contrariando tudo o que se diga a respeito, e sabemos que o dizem, a morte esperada e sabida não é menos doída.
Nem a aridez que se faz aguda e crônica, por sua intensidade e (per)duração, consegue desidratar a alma que em surto de paixão, bombeia água de poços misteriosos conduzindo-a a sair pelos olhos, esguichando, dignas de um arroubo expressionista.
Os antebraços e canelas, de cor e aspecto semelhante aos utilizados pelos estudantes de medicina em suas dissecações, são prenúncio de sua própria finitude, por sinal próxima. Se para Freud os antebraços eram o foco da manifestação orgânica na histeria feminina, aqui são apenas morte. A diferença entre a vida e a morte aqui é que a vida chora, a morte não. A vida insiste em ser molhada.
Talvez, então, por desisitirem da vida eles chorem, coloquem a vida para fora e ao fazê-lo fecundem o solo, como em muitos mitos em que lágrimas de dor produzem vida. Sugestivos mitos.
Dor pela vida, dor pela morte, como num parto às avessas a morte dói também.
Parecem estar eles sem pele, estarão representados assim por estarem sentindo muita dor ou, por Cândida clemência, aparecem esfolados justamente para sentirem menos, já que pele, nervos e cérebro têm mesma origem embriológica. Retira-se a pele para eliminar receptores nervosos.
Porém não estão totalmente sem pele, à excessão do pequeno falecido com feição cadavérica, todos possuem pele sobre a face. É muito mais fácil manter a máscara sobre o rosto que sobre o corpo, mesmo assim a dor e o choro conseguem desfigurar essa máscara.
Será por isso que na dor seja tão comum esconder o rosto, fechar os olhos ou levar as mãos à face? Para não correr o risco de as lágrimas desmancharem essa máscara tão duramente construída e, assim, serem (re)conhecidos pela morte, pelos outros ou por si próprios?
Vemos também a tentativa de esconder o corpo, e desta forma o sentir, dobrando-o para a frente ou torcendo-o de alguma forma.
No quadro podemos observar também que a criança mais nova aparece de frente, sem esconder seu rosto ou corpo. Ela não corre o risco de perder suas máscaras, afinal não chora. É capaz que nem saiba possuir uma máscara. Ela é uma espécie de narradora e interlocutora entre o quadro e o espectador já que tem um dos olhos voltados para cena e o outro para nós. Que tragédias será que ela contempla?
Os corpos tão desabados nos indicam a falta, falta de água, de alimento, de ligamentos, de vida e de pele. A fragilidade é tanta que ao mais leve toque esses personagens se esfacelariam, como tantos outros castelos de areia, secos.
A cor dos corpos não mais é a cor do solo, do qual lhe dizem ser descendentes por intermédio de Adão. perderam o rubro da alegria e da vitalidade, empalideceram. Assemelham-se agora mais à cor da cabaça, fruto morto e oco. Aliás, através da cabaça, lembram-se de que a água perdida mesmo reposta não produz vida. A cabaça, mesmo cheia d´água jamais voltará a ser fruto.
Então por que choram? Por que desperdiçam sua água contrariando todas as outras espécies de animais e também vegetais?
Talvez chorem pela falta de chuva, que só fica como ameaça e promessa no céu sem trazer-les a possibilidade de vida.
Choram porquê a dor da alma desafia a natureza.
Rogério Queiroz

3 comentários:

  1. Voy a aprender mucho portugués!!!!! Enhorabuena Rogerio!!!!!
    Intentaré entendelo todo!!!!
    Un beso grande.

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  2. Pues, un honor tenerla como lectora Sandra. Saludos desde Brasil.

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  3. Dor, muita dor. Temo que isto esteja voltando ao presente.

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